Em entrevista à Folha, cientista político fala sobre riscos da ascensão
de líderes populistas nacionalistas
22.abr.2018 às 2h00
Uirá Machado
[RESUMO] Em entrevista à Folha, célebre pensador
fala sobre riscos que a democracia enfrenta com a ascensão
de líderes populistas nacionalistas, tema presente em seus últimos escritos.
Os dias de
certeza de Francis Fukuyama há muito ficaram para
trás. No final da década de 1980 e nos anos 90, o autor do célebre ensaio
"O fim da história?" (1989) parecia convencido de que a democracia
liberal representava o ápice da evolução ideológica da humanidade e se
universalizaria como forma de governo.
Passadas
quase três décadas do artigo de 18 páginas na revista "The National
Interest" (o interesse nacional), Fukuyama está preocupado. Ainda acredita
na sobrevivência da democracia, mas considera que a ascensão de líderes
populistas nacionalistas —Jair Bolsonaro (PSL) entre eles—
constitui sério risco para o sistema político e econômico que se
difundiu no Ocidente.
O cientista
político Francis Fukuyama no campus da Universidade de Stanford, onde trabalha,
nos Estados Unidos. - Noah Berger - 5.jan.2012/The New York Times
Não lhe
faltam motivos para isso, como fica claro em texto escrito para o Instituto de
Pesquisa Credit Suisse e distribuído no Fórum Econômico Mundial de Davos deste
ano.
O professor
de ciência política da prestigiosa Universidade Stanford registra que o número
de países democráticos saltou de 35, em 1970, para quase 120 nos anos 2000. A
partir de então, a onda começou a refluir.
Do ponto de
vista qualitativo, a situação piora. Fukuyama afirma que não se trata só de
observar que o apoio à globalização tem sido substituído em muitos lugares por
uma ênfase na soberania nacional. O problema é maior porque essa nova tendência
ganha força dentro do próprio mundo democrático.
Estados
Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Holanda, Hungria e Polônia, cada um a
seu modo, são exemplos de países ocidentais nos quais a agenda do nacionalismo
populista ganha espaço crescente.
Com a
engenhosidade típica de seus livros —sempre best-sellers mundiais—, Fukuyama
lembra que a democracia liberal está construída sobre três pilares: um Estado
que concentra poder e o utiliza pelo bem dos cidadãos; a igualdade de todos
perante a lei; e mecanismos de controle do poder, como eleições livres.
Em seguida,
chama a atenção para um aspecto grave: líderes populistas nacionalistas usam
esse terceiro pilar para chegar ao poder e, a partir de dentro, corroer os
outros dois. Ou seja, a legitimidade do processo democrático transforma-se em
arma contra a própria democracia.
"A
única maneira de derrotá-los [os populistas nacionalistas] é criando uma
mobilização para vencê-los nas urnas", afirma Fukuyama em entrevista
à Folha, por email.
É fácil
falar, difícil fazer. O professor de Stanford sabe que políticos populistas se
saem bem na comunicação com os eleitores. Nas redes sociais, tiram proveito da
difusão de notícias falsas e da manipulação digital. Há esperança de que a
informação verdadeira venha a prevalecer?
"A
defesa tradicional da liberdade de expressão depende da percepção de que, num
livre mercado de ideias, as melhores vão vencer. Com os algoritmos das redes
sociais, isso não é verdade", diz. "Precisamos de mais curadoria na
internet. Precisamos do retorno de editores e outros guardiães da informação, e
as plataformas digitais precisam assumir sua responsabilidade."
A
manipulação, entretanto, é apenas parte da história. A depender do país, pode
ser majoritária a parcela da sociedade disposta a apostar num candidato
populista. Seu apoio "não vem dos pobres, mas de pessoas de classe média
que perderam status devido à globalização, ou de grupos étnicos e raciais que
deixaram de se sentir culturalmente dominantes", diz o cientista político.
A dimensão
cultural é especialmente relevante. Para Fukuyama, mesmo quando o discurso
anti-imigrantes expressa uma disputa por emprego, a motivação não é apenas
econômica. "Hegel era um observador melhor do que Marx. Ele viu que a luta
por reconhecimento move a história, e não a luta por recursos. Reconhecimento é
a grande questão nessa insurreição populista."
Americanos e
europeus conhecem bem esse cenário. Quando o governo acolhe imigrantes ou
refugiados, ainda que lhes oferecendo estruturas precárias de assistência,
fatias das populações locais reclamam do uso de impostos para benefício de
estrangeiros e protestam contra o aumento da competição no mercado de trabalho
—sobretudo quando há incentivos aos desfavorecidos.
Mais que
isso, interpretam a hospitalidade como falta de reconhecimento a grupos que
sempre foram a base da identidade nacional. Isto é, os forasteiros estariam
recebendo tratamento melhor do que os responsáveis por manter o país de pé.
Isso não
significa que outros fatores devam ser desconsiderados. Desemprego e
concentração de renda de fato têm aumentado, e a resposta dos governos chega
quase sempre tarde demais para a população.
A análise de
Fukuyama é precisa para o contexto americano (Donald Trump)
e britânico (Brexit), mas vale também
para outros países da Europa e mesmo para o Brasil.
Embora não
exista por aqui uma crise migratória, sempre houve problemas econômicos e um
Estado ineficiente. Além disso, os mais pobres, ao melhorar de vida, passaram a
cobrar mais dos governos e a recear a perda de suas conquistas. Ao mesmo tempo,
grupos mais endinheirados, percebendo o movimento de ascensão social das
classes baixas, sentiram que talvez deixassem de ser culturalmente dominantes.
Em alguns de
seus livros, Fukuyama cita o Brasil. Não dedica grande espaço ao país, mas
conhece a história e acompanha eventos importantes, como as manifestações de
2013.
Questionado
sobre a possibilidade de o nacionalismo populista ser um risco para o sistema
político brasileiro, disse: "Bolsonaro representa uma verdadeira ameaça à
democracia. Subjacente a isso, há uma polarização social no Brasil, que
transformou em luta ideológica o que começou como campanha anticorrupção".
"A Petrobras seria uma das últimas empresas e
obviamente teríamos que ver para
que capital essa empresa seria
transferida." /Daniel Scelza - 15.mar.2015/ABI/Folhapress
Para o
professor de Stanford, Estados modernos se caracterizam,
entre outras coisas, pelo fato de a lei valer não só para cidadãos comuns mas
também para atores políticos relevantes. Por isso atribui grande importância ao
combate à corrupção.
Se o país
está no caminho certo com os avanços da Lava Jato? "Sim, sem dúvida. O
Brasil tem os tribunais mais fortes e independentes da América Latina, bem como
uma imprensa livre. Apesar das notícias deprimentes de meses recentes [não
disse quais], acho que os brasileiros devem se orgulhar disso."
Fukuyama, no
entanto, preferiu não responder sobre a condenação de Lula (PT): "Esse é
um assunto muito complexo que não quero abordar nesta entrevista". À época
da troca de emails, o ex-presidente ainda não tinha sido preso.
RECÉM-LANÇADO NO BRASIL,
NOVO LIVRO DISCUTE CAUSAS DA DECADÊNCIA POLÍTICA
Desde que
foi projetado mundialmente, em 1989, Fukuyama nunca esteve mais distante das
convicções que expressou sob o impacto do esfacelamento da União Soviética e a
derrocada do comunismo. As hesitações de agora, contudo, estão longe de configurar
uma guinada em sua prolífica carreira intelectual.
A rigor, já
no livro "O Fim da História e o Último Homem" (1992), ele matizou as
conclusões expostas três anos antes em seu famoso ensaio.
Com o passar
do tempo, acrescentou novas cores ao argumento central sobre a universalização
da democracia, sem nunca perder a pretensão de realizar uma grande síntese do
desenvolvimento político (a palavra "pretensão" vai aqui sem nenhuma
carga negativa; as ciências sociais se beneficiariam se existissem mais pensadores
com tamanho fôlego e esse tipo de ambição).
Pintura de
Adams Carvalho para a capa da Ilustríssima - Adams Carvalho
Em 2011,
lançou "As Origens da Ordem Política - Dos Tempos Pré-Humanos até a
Revolução Francesa". Três anos depois, publicou a segunda parte da obra:
"Ordem e Decadência Política - da Revolução Industrial à Globalização da
Democracia".
Em mais de
mil páginas, Fukuyama descreve transições ocorridas nas instituições políticas
em todas as etapas da organização humana: do nível de bando às sociedades
tribais, destas aos Estados arcaicos e destes aos modernos, com o
desenvolvimento de sistemas legais independentes e de instituições de controle.
No segundo
tomo, lançado no Brasil em fevereiro, ele argumenta que qualquer regime está
sujeito à decadência, um processo que se desenrola por dois motivos principais:
descompasso entre as instituições e a dinâmica social, resultando em crescente
desconfiança quanto à capacidade de o governo resolver problemas, e a tendência
de voltar a uma configuração patrimonialista do Estado, com o favorecimento de
grupos de interesse em detrimento do restante da população.
Fukuyama
mostra-se convencido de que a democracia liberal é a forma mais capaz de
corrigir rumos sem abrir mão do controle social sobre governantes. Por isso,
acredita que estejamos vivendo sob simples recessão democrática, e não uma
depressão como a que se viu às vésperas do fascismo, do nazismo e da Segunda
Guerra Mundial.
A questão,
naturalmente, é saber se as correções de rumo chegarão a tempo. Uma questão
crucial para os brasileiros —os sinais da decadência política estão em toda
parte.
Uirá Machado, 37, bacharel em direito e em filosofia, é editor
da Ilustríssima. Foi editor de Opinião, repórter de Poder e coordenador de
Artigos e Eventos.
Adams Carvalho, 39, é pintor e ilustrador
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