O Brasil vive o pior momento
da pandemia novo coronavírus, batendo recordes de mortes ao longo da semana. Os
dados chocam boa parte da população, que se questiona: como o país chegou nesse
ponto?
O UOL conversou com cinco
infectologistas e pesquisadores com larga experiência na área da saúde para
apontar quais são os fatores que levaram o Brasil a seguir na contramão do
mundo e bater recordes negativos. Veja a seguir.
1) Invisibilidade do
Ministério da Saúde
Os especialistas são enfáticos
a apontar a inação do ministério da Saúde como o principal fator nessa equação
trágica. O Brasil está com seu terceiro ministro da Saúde em dois anos.
O general Eduardo Pazuello foi
conduzido ao cargo pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em setembro de
2020, após a saída dos seus dois antecessores.
Luiz Henrique Mandetta (DEM)
foi demitido do cargo com menos de um ano de ação, por não estar
"alinhado" à política do governo. Já Nelson Teich não se segurou mais
de dois meses na cadeira, pedindo demissão.
O desgoverno nacional fez com
que o Ministério da Saúde do Brasil, que era internacionalmente respeitado no
passado por enfrentamentos de epidemias e pelas campanhas de vacinação, se
tornasse um disseminador de más práticas e um 'confundidor' de políticas Carlos
Magno Fortaleza, infectologista e professor da Unesp.
O ministro da Saúde, por outro
lado, ressalta que o governo entende a gravidade da pandemia e irá investir na
transferência de pacientes
2) Demonização do isolamento
social
Desde o primeiro mês de
pandemia, Bolsonaro vociferou contra o isolamento social e o fechamento do
comércio nas cidades. Pior: promove inúmeras aglomerações durante os eventos
que frequenta de Norte a Sul do Brasil.
Na visão dos médicos, desde o
ano passado há uma dupla interpretação da pandemia: governadores e prefeitos
incentivam o distanciamento, enquanto o presidente da República defende
exatamente o contrário. Isso, dizem os especialistas, prejudica a comunicação e
faz com que boa parte da população não respeite as medidas sanitárias mais
básicas, como o uso de máscara.
Como resultado de tudo, houve
um pacto coletivo de autoengano que leva a população a rejeitar medidas mais
duras, mas essenciais para conter a pandemia", disse Carlos Magno.
3) Fadiga da pandemia
Foi esse descrédito do
isolamento que, segundo os especialistas, intensificou a 'fadiga da pandemia',
onde uma parcela da sociedade se cansou de seguir as medidas sanitárias da
pandemia após um ano e adotou uma posição irresponsável diante da gravidade da
doença.
A consequência disso foram
aglomerações em festas de final de ano e Carnaval, aumentando o número de casos
de covid-19 e piorando a situação dos hospitais públicos e privados. Não à toa
a última semana de fevereiro registrou os piores índices de isolamento social
no país desde o início da pandemia
4) Testagem pífia
Mesmo depois de um ano de
pandemia, o Brasil faz poucos testes de covid-19 na população. Há pouco mais de
22 milhões de testes feitos no país, número inferior a outras nações da Europa,
da Ásia, os EUA e até de nossos vizinhos da América do Sul.
A política de testagem é
apontada pelos médicos como a ação mais fundamental da pandemia. Ao testar boa
parte da população, é possível rastrear epidemias de casos nos bairros de cada
cidade e isolar os contaminados e suspeitos com mais agilidade. No final das
contas, seriam menos pessoas contaminadas e menos leitos de hospitais a serem
utilizados.
Não se trata de testagem para
contar casos, mas, sim, testagem para identificar precocemente os casos e
impedir a disseminação do vírus. Uma pessoa que está infectada e não sabe tem
muito mais chances de circular e transmitir o vírus para outras do que uma
pessoa que recebe o diagnóstico e, portanto, é recomendada a ficar em casa. Por
isso a testagem em larga escala é tão essencial.
Mas, mais uma vez, o Brasil
opta por nadar contra a maré. Segundo o Ministério da Saúde, enquanto no início
da pandemia testava-se mais de 1 milhão de pessoas por semana —número já
considerado baixo à época — agora, esse número não chega a 100 mil.
A cada 1.000 habitantes, o
Brasil testou em média 112 pessoas até hoje, conforme apontam os dados da
Saúde.
Na Nova Zelândia, que
registrou apenas 25 mortes por covid, testou-se quase o triplo: 321 testes a
cada mil habitantes, de acordo com o World in Data, da Universidade Oxford. O
Canadá, que não chegou a 1 milhão de casos, realizou 462 testes para cada mil
habitantes.
5) Atraso e desconfiança na
vacinação
Não foram poucas as vezes em
que Bolsonaro levantou suspeitas e alimentou a desconfiança publicamente em uma
vacina contra a covid-19. Taxou a vacina produzida pelo Instituto Butantan, em
São Paulo, de "vaChina" e chegou a dizer que quem tomasse o
imunizante poderia virar um jacaré.
Bolsonaro também ignorou as
empresas que produzem as vacinas, como a Pfizer, que tentaram contato com o
governo federal para alinhar a compra de vacinas para a população.
Ele ignorou, também, ao menos
cinco ofícios enviados pelo Butantan para alinhar o número de doses a ser
comprada pelo ministério da Saúde.
O resultado disso é uma
campanha de vacinação a conta-gotas, onde as principais capitais chegam a parar
por semanas a vacinação por falta de doses. O cenário, ainda segundo os
especialistas, contribuí para mais infecções e, assim, mais mortes em decorrência
da doença. O governo correu atrás do prejuízo nesta semana ao sinalizar
"intenção de compra" de vacinas da Pfizer e da Janssen, do grupo
Johnson&Jonhson.
Com mais de nove milhões de
pessoas vacinadas, o Brasil ocupa o sexto lugar na lista de países que mais
aplicaram doses. Mas, se considerada a proporção por população, nosso país está
40ª posição, com 3,3% de vacinados.
6) Medicamentos
comprovadamente ineficazes
A promoção de medicamentos
comprovadamente ineficazes é apontada como um dos principais fatores que
contribuíram para a tragédia da covid-19. Induziu a falsa sensação de proteção
e com isso expõe as pessoas ao risco da infecção sob duas falsas premissas: a
de que existe prevenção e a de que existe terapia específica.
Por fim, o desperdício de
recursos absurdos com tais medicamentos. Recursos que poderiam ser empregados
em áreas mais importantes, como o diagnóstico em larga escala e mapeamento de
contatos Evaldo Stanislau, infectologista do Hospital das Clínicas Desde o ano
passado, o governo federal embarcou na hidroxicloroquina e na cloroquina para o
tratamento da covid-19, mesmo após uma série de estudos apontarem que os
medicamentos não funcionam para o novo coronavírus.
Bolsonaro, quando se
contaminou com o vírus, chegou a publicar vídeos tomando o medicamento, com
direito a apontar a caixa do remédio a uma ema. O saldo final foi mais
desconfiança das medidas sanitárias, menos pessoas respeitando o isolamento
social, mais contaminações e, assim, mais mortes por covid-19.
7) A variante P.1
Nascida em Manaus, a variante
P.1 é mais transmissível que o vírus comum de covid-19 e tem uma carga viral 10
vezes maior, segundo estudos.
Além disso, pesquisas recentes
apontam que pessoas mais jovens, entre 30 e 50 anos, são o perfil dos mais
atingidos por essa nova partícula. Para piorar, a P.1, conforme apontam
pesquisas, ainda tem grandes chances de contaminar quem já se contaminou
anteriormente com o vírus convencional da covid-19.
Os efeitos da nova cepa do
vírus são apontados pelos especialistas como a possível causa do retrocesso nos
dados da pandemia em 2021.
Em Araraquara, no interior de
São Paulo, por exemplo, onde casos de infecção pela variante foram
identificados, o sistema de saúde colapsou e a prefeitura decretou lockdown.
Desenvolvendo a equação com
esses sete pontos acima, é possível entender como o Brasil chegou ao ponto de
assistir o colapso do sistema de saúde dos estados e a morte de mais de 250 mil
pessoas.
Para a reportagem, foram
consultados os médicos Carlos Magno Fortaleza, infectologista e professor da
Unesp; Evaldo Stanislau, infectologista do Hospital das Clínicas de São Paulo;
Pedro Hallal, epidemiologista e professor da Universidade Federal de Pelotas e
Gulnar Azevedo, epidemiologista e presidente da Abrasco (Associação Brasileira
de Saúde Coletiva).
Fonte: UOL
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