O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou, na sexta-feira (04),
ação civil pública em que pede a condenação do apresentador de televisão José
Siqueira Barros Júnior, conhecido como ‘Sikêra Jr”, a reparar dano moral
coletivo decorrente de discurso de ódio às mulheres, por proferir falas
discriminatórias, machistas e misóginas, além de humilhar com expressão
racista, em transmissão ao vivo, uma mulher negra, que estava sob custódia do
estado da Paraíba, em cadeia pública da capital. O fato ilícito ocorreu em 5 de
junho de 2018 e repercutiu em todo o estado, causando grande comoção entre as
telespectadoras paraibanas, que se sentiram ofendidas com as agressões verbais
do apresentador.
À
Justiça, o MPF pede que o apresentador indenize em R$ 200 mil a mulher negra
que teve a dignidade ofendida por ele, além do pagamento de R$ 2 milhões a
entidades representativas feministas ou de promoção de direitos humanos ou,
alternativamente, ao Fundo Nacional de Direitos Difusos. O valor deve ter
atualização monetária e juros.
O Ministério Público também pede que o apresentador seja
condenado a se retratar publicamente, reconhecendo expressamente a ilicitude de
suas falas, mediante discurso a ser publicado em todas as suas redes sociais e
na TV Arapuan – emissora onde a conduta ilícita foi praticada. A duração do discurso
não deve ser menor que 2 minutos e 47 segundos, que foi o tempo em que ele
proferiu as ofensas. A retratação deve ser feita no mesmo horário em que o
apresentador proferiu as agressões, entre 12h e 13h, durante o período de sete
dias. Conforme o pedido ministerial, o início da retratação deve ocorrer em até
10 dias, após a intimação do trânsito em julgado desta ação.
O
conteúdo da retratação deve ser previamente aprovado pelo MPF e por pessoas ou
instituições que também participarem do processo como amicus
curiae (que auxiliam o tribunal com esclarecimentos sobre
questões essenciais ao processo). O MPF ainda pede multa diária, não inferior a
R$ 10 mil, em caso de descumprimento da sentença condenatória. Para tanto,
também foi pedido à Justiça Federal que intime a Defensoria Pública da União e
associações civis representativas de movimentos feministas e do direito à
comunicação cidadã para integrarem o polo ativo ou participarem do processo,
como amicus
curiae, caso queiram.
Epidemia de crimes de ódio – “O Ministério Público
Federal está muito atento para os chamados ‘discursos de ódio’, crimes que
causam grande prejuízo ao tecido social, além de graves danos psicológicos às
vítimas”, afirma o procurador da República José Godoy Bezerra de Souza. Ele
ressalta que há uma grande preocupação do MPF com os discursos de ódio que vêm
sendo praticados através das redes sociais em larga escala. “O que chama a
atenção nesse caso é que, além de ter sido praticado numa emissora de televisão
aberta, também foi publicado na plataforma de vídeos do YouTube e acessado
milhares de vezes. Isso demonstra o potencial danoso desse tipo de crime, que
vem assolando a sociedade brasileira, numa verdadeira epidemia de crimes de
ódio contra grupos vulneráveis, no caso, as mulheres, especialmente, a mulher
negra”, afirma Godoy.
O
procurador também alerta que, historicamente, de início, as pessoas não dão
tanta importância aos crimes de ódio e ataques a grupos vulneráveis, até que os
ataques vão subindo o tom. “Normalmente, os primeiros degraus desse tipo de
violência se iniciam com piadas – o chamado ‘racismo recreativo’. Em seguida,
passa-se à agressão verbal, agressão física, muitas vezes chegando à destruição
de grupos. Então, é preciso combater todo tipo de discurso de ódio e a legislação
brasileira possui meios para que isso possa ser feito e é o que o Ministério
Público está fazendo neste momento”, assegura Godoy.
Protestos, denúncia e TAC – As ofensas do apresentador
provocaram reações imediatas e diversas entidades feministas e organizações realizaram
protestos e denunciaram o fato ao Ministério Público. A partir de
representação assinada pelo Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação
do Estado da Paraíba (Findac/PB), o MPF instaurou procedimento administrativo,
que resultou em assinatura de termo de ajustamento de conduta (TAC)
com a TV Arapuan.
Além
de diversas medidas de reparação, já cumpridas pela emissora, o TAC tinha
uma cláusula de penalidades e responsabilidades que previa a possibilidade de
responsabilização cível e penal do apresentador. Nesse caso, a ação
ajuizada na sexta-feira (4) tem como foco a tutela cível/constitucional
dos direitos coletivos e individuais indisponíveis lesados, com vistas à
reparação/compensação dos danos decorrentes da conduta ilícita. Já as possíveis
repercussões criminais da conduta do apresentador continuarão sendo
investigadas, considerando-se a independência das instâncias judiciais.
Agressão a uma mulher negra – Em determinado momento das
agressões, o apresentador zomba dos traços característicos da raça negra da
mulher sob custódia do estado, cuja imagem aparece no telão do estúdio do
programa, enquanto o apresentador a define como “venta de jumenta”, numa clara
alusão ao formato das narinas da vítima. “O discurso do apresentador não só
associou a imagem da mulher à de um animal para fazer piada e indiretamente
criticar de maneira leviana suas condições de vida e a não adoção de um padrão
estético, mas a sua postura nos mostra também a falta de comprometimento com a
profissão de jornalista, uma não assunção de responsabilidades que são
inerentes a quem se coloca frente às câmeras com a missão de falar para
milhares de pessoas”, aponta dissertação de mestrado na Universidade
Federal da Paraíba sobre violação de direitos humanos no telejornalismo
policial no estado.
Na
ação, o MPF demonstra que, num primeiro momento, o apresentador achincalhou a
imagem da mulher negra detida pela polícia, ridicularizando a dignidade dela,
ao compará-la com o refrão de música popular “pau que nasce torto, nunca se
endireita” e disseminando entre os telespectadores o fato de que, na visão do
apresentador, a vítima seria incapaz de ser reeducada e ressocializada. “Nessa
parte, então, o desígnio do réu é claramente escarnecer a personalidade de uma
mulher em situação de vulnerabilidade social (pobre, vítima das drogas e com a
liberdade cerceada) que sequer pôde exercer seu direito de resposta, por estar
sob custódia do Estado”, aponta o Ministério Público.
Agressão a todas as mulheres – Já no segundo momento das
ofensas, o apresentador inicia ataques misóginos em atos de discriminação e
preconceitos generalizados contra as mulheres. Ele profere e estimula as
pessoas que estão no estúdio a dizerem, “pelo menos, por 16 vezes, em apenas um
minuto e sete segundos, o adjetivo ‘sebosa’ às mulheres que não pintam as
unhas”, relata a ação ajuizada. É nítido o desprezo do apresentador às
mulheres, quando no final do vídeo, “prossegue com outros atos misóginos, em
gestos não menos repugnantes, que simulam o uso de barbeador de lâminas nas
genitálias e em ambas as axilas, para dizer que mulheres que não se depilam
também seriam sebosas”, narra o órgão ministerial.
Combate à discriminação contra a
mulher – Ao
praticar as agressões, o apresentador violou direitos fundamentais da mulher
detida e de todas as mulheres, como também infringiu princípios e valores
éticos e sociais previstos na Constituição Federal, deveres e obrigações
previstos em tratados internacionais e normas do ordenamento jurídico brasileiro.
“A Constituição da República, em seu artigo 1.º, inciso III, atribuiu absoluta
prioridade ao fundamento da dignidade da pessoa humana. No artigo 3.º, inciso
IV, a Constituição também fincou como objetivo fundamental da República
Federativa do Brasil, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, lembra o
órgão fiscal da lei.
Honra e imagem são invioláveis – A Constituição Federal
ainda prescreve no artigo 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza; que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei; não será submetido a tortura nem a
tratamento desumano ou degradante e que são invioláveis a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Proteção efetiva da mulher – O Brasil é signatário da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher, de 1979, das Organização das Nações das Unidas, promulgada pelo Decreto
n.º 4.377, de 13 de setembro de 2002. Segundo o artigo 2º da Convenção, “os
Estados Partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas
formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma
política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher”.
Entre
os compromissos assumidos pelos signatários estão: adoção de sanções e medidas
que proíbam toda discriminação contra a mulher; estabelecer proteção efetiva da
mulher contra todo ato de discriminação, zelar para que as autoridades e
instituições públicas não cometam discriminação contra a mulher; tomar as
medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por
qualquer pessoa, organização ou empresa, dentre outras medidas.
Livres de padrões estereotipados
– As
ofensas do apresentador também ferem a Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como “Convenção de
Belém de Pará”, promulgada pelo Decreto n.º 1.973, de 1º agosto de 1996,
segundo a qual, toda mulher tem direito a que se respeite a dignidade inerente
à sua pessoa. Conforme a Convenção Interamericana, o direito de toda mulher a
ser livre de violência abrange o direito a ser livre de todas as formas de
discriminação; e o direito a ser valorizada e educada livre de padrões
estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em
conceitos de inferioridade ou subordinação.
Liberdade de expressão x
discurso de ódio – Na ação ajuizada, o MPF frisa a vedação ao uso do direito
à liberdade religiosa, de pensamento e de expressão, como instrumento de
opressão, “notadamente em face de minorias sociais, cujos integrantes são mais
suscetíveis ao silenciamento pela parcela majoritária da população”. O órgão
ministerial demonstra que a conduta do apresentador “não se restringiu ao mero
desferimento de ofensas à honra subjetiva de uma mulher vulnerável”. Ele também
“incorreu em verdadeiro discurso de ódio porque a agressão realizada pelo réu
constituiu-se de condutas nocivas ao equilíbrio psicológico da vítima e de uma
coletividade de mulheres telespectadoras e internautas, que ao ouvirem o
discurso proferido, sentiram-se segregadas da sociedade”, aponta o autor da
ação.
O
órgão fiscal da lei arremata que a responsabilidade pelo que se diz ou pelo que
se divulga é pressuposto para que as relações sociais se mantenham organizadas
e harmoniosas. “Deste modo, extrapolados os limites aceitáveis em um discurso
democrático, cabe ao Poder Judiciário restabelecer a legalidade e integridade
das pessoas eventualmente atingidas”, conclui.
PB Agora com informações do MPF
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